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Blog independente

Colaboracionismo à brasileira

“A democracia sempre foi um viveiro para fascistas porque, por sua própria natureza, tolera todas as opiniões”, escreve Jean-Paul Sartre em “O que é um colaborador?”. “É importante, portanto”, prossegue ele, “que elaboremos leis restritivas: não deve haver liberdade contra a liberdade”. A advertência, que se referia à França do segundo pós-guerra, só não é mais perfeita para o Brasil de 2021 porque lá, naquele momento, o fascismo já tinha sido derrotado.

Publicado em 1945 em La République Française, uma revista da Resistência impressa em Nova York, o ensaio traça o retrato do cidadão francês que, diante da escolha difícil entre a república e o nazismo, preferiu apostar na política de aniquilação e destruição capitaneada pelos alemães. Assim como os fascistas tropicais não nasceram de um dia para o outro com o protagonismo do Cavalão, os colabôs não brotaram, do nada, com a eclosão da Segunda Guerra Mundial – e nem iriam desaparecer com o fim dela. Fica a dica.

É um erro frequente, observa Sartre, explicar o colaboracionismo pelo pertencimento a uma classe social ou a adesão pura e simples ao conservadorismo. Os colabôs nascem de “uma determinação individual, não de uma posição de classe”. Eles são resultado de desagregação social e podem ser reconhecidos em três frentes: “elementos marginais” do sistema político, intelectuais que abjuram sua origem mas não têm “coragem ou possibilidade” de se identificar ou defender outro lugar ou posição e, finalmente, os numerosos “fracassados do jornalismo, da arte e do ensino”.

“A maioria dos colaboradores foi recrutada entre os que chamamos de anarquistas de direita”, diz o filósofo. “Eles não aceitam nenhuma lei da República, se declaram livres para recusar os impostos ou a guerra, recorrendo à violência contra seus adversários a despeito dos direitos reconhecidos por nossa Constituição”. O impulso supostamente libertário é paradoxal, já que em sua maioria os colabôs não veem problema em se submeter a um regime de força: “O culto do fato isolado e o desprezo pelo Direito, que é a universalidade, leva-os a se submeter a realidades rigorosamente individuais: um homem, um partido, uma nação estrangeira”.

O que une os colaboradores é a convicção de que seu lugar na sociedade só pode ser garantido pela destruição, pelo arrasamento dos valores caros a um mundo do qual não fizeram parte ou ao qual não se integraram como pretendiam. Ressentimento é mato

Em nossas latitudes, a boçalidade não é produto de uma ocupação de forças externas – ela é endógena, acontece dentro de nossas fronteiras. Não é, portanto, sem masoquismo que um cidadão negro é fiador do racismo de Estado, jornalistas trabalham contra a plena liberdade de imprensa e supostos artistas sabotam qualquer possibilidade de uma política cultural decente. O que os une é a convicção de que seu lugar na sociedade só pode ser garantido pela destruição, pelo arrasamento dos valores caros a um mundo do qual não fizeram parte ou ao qual não se integraram como pretendiam. Ressentimento é mato.

Perfil

É colaboracionista aquele que, encarapitado num grande jornal, dissemina negacionismo como opinião; e também o coleguinha que, em mal disfarçado corporativismo, o defende com premissas pseudo-liberais. É colaboracionista aquele que não perde a chance de promover equivalências entre extrema direita e oposição democrática. E também o radical defensor da liberdade de agir contra a liberdade.

É colaboracionista o jornalista – ou alguém que assim se identifica – que topa brincar de entrevistador para servir de escada e capacho ao “PR” e a seus porta-vozes formais e informais. Assim como todo dono de veículo de comunicação que, desfrutando de concessão pública, abre microfones e câmeras para o chorume oficial, criando dezenas de sucursais de uma agência nacional do esgoto.

São colaboracionistas o cantor de segundo time travestido de ativista, o filósofo de terninho nas fronteiras da repugnância, o liberal contrário às medidas sanitárias, o crítico literário racista e arrivista, a cadeia de mediocridade em torno do cartomante aristotélico – quem dele é aluno, quem o publicou e publica, seus melancólicos epígonos e as risíveis polêmicas por eles atiçadas.

Muito antes de 2018, todos estes vinham investindo na dissolução das instâncias democráticas. Hoje, em meio à miséria generalizada, aos escombros da decência e aos cadáveres, dobram a aposta na mediocridade destrutiva. A aceitação pacífica dessa gente, não custa lembrar, é a normalização da desonestidade intelectual.

É colaboracionista, hoje, todo aquele que, tendo voz pública, se abstém – mesmo que, em tese, não subscreva os valores de destruição. Pois em momentos graves, quem não é inequivocamente contra é, na prática, a favor.

O blog da Rede Brasileira de Estudos e Práticas Anticorrupção é um espaço aberto para manifestações de diversos autores. O conteúdo publicado aqui não reflete, necessariamente, a opinião da Transparência Internacional – Brasil.

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Assim como os fascistas tropicais não nasceram de um dia para o outro, os colabôs não brotaram com a eclosão da Segunda Guerra Mundial – e nem iriam desaparecer com o fim dela.